Cadê?
O boletim de hoje chega mais tarde para refletir as discussões sobre o Global Stocktake (GST), que estão acontecendo de forma tensa nesta quinta-feira (6). A delegação brasileira se reuniu com a sociedade civil no começo desta tarde em Dubai. Impressões sobre os dois pontos estão abaixo.
Texto final
O GST que foi divulgado às 5h de terça-feira (5), está sendo negociado intensamente. Ontem ele foi passado em consulta entre as partes (como os países são chamados sob o Acordo de Paris). Este ano, o acordo final da Cúpula, o chamado texto de cobertura, será o GST, que mais do que fazer um balanço do estágio atual do combate à mudança do clima, estabelece a base para as novas metas climáticas dos países (NDCs). E o nível de ambição das NDCs será revisado na COP30 de Belém do Pará, em 2025, quando o acordo de Paris completa 10 anos.
Indo para o Inferno
Na consulta de ontem ficou claro que apesar de 2023 ter sido o ano mais quente da história, com a Amazônia sendo drenada pela seca extrema, assim como o Canal do Panamá, que precisou limitar a passagem de cargueiros, e mesmo diante de todas as vidas perdidas e prejuízos causados pelos eventos extremos recentes, há um grupo de países que não aceita fechar a porta do inferno, que é a indústria e combustíveis fósseis.
>>> Conteúdo para suas redes: este vídeo compartilhado pelo jornalista André Trigueiro, no Xwitter.
Repetição
Há coisas novas e coisas repetidas no texto. E nem todas as coisas novas são boas, como novas previsões de tecnologia de captura e estocagem de carbono (CCS ou CCUS) para cumprimento de NDCs, a ciência tem sido clara sobre como essa tecnologia não está madura para ter qualquer papel na redução das emissões na velocidade necessária agora. E elas custam muito caro. Na verdade, o que se espera no texto é que haja uma limitação – um teto mesmo – para o qual o uso de CCS estaria autorizado como forma de implementar a redução das emissões.
Phase-out
A linguagem usada para abordar a eliminação dos combustíveis fósseis (parágrafo 34) é basicamente a mesma daquela duramente construída em Glasgow, na COP26, dois anos atrás, como notou a analista Catharine Abreu (me avise se gostaria de fazer entrevista, tenho o contato). Nessa linguagem, a palavra “eliminação” (phase-out) é usada apenas em relação aos “subsídios ineficientes dos combustíveis fósseis”. Até o momento, este é o ponto mais avançado em que as nações conseguiram ir, coletivamente, para reconhecer o que a ciência já alerta há anos – a extração e queima de hidrocarbonetos precisa ser interrompida.
Além da linguagem para a energia suja não estar alinhada à meta de 1,5ºC, nada é dito sobre metano, que é um gás de efeito estufa de curta duração, mas muito potente em aquecer a atmosfera.
>>> Renata Potenza, do Imaflora, está acompanhando as discussões sobre metano e pode esclarecer este ponto (via Alessandra Leite).
Linguagem forte, consenso fraco
Há alguns ingredientes para um resultado ambicioso nas 24 páginas do GST neste momento, e inclusive bastante referências científicas, mas a linguagem em alguns trechos parece forte demais para algumas partes, como EUA, os europeus e os anfitriões Emirados Árabes. A ambição do documento tem também pelo menos uma lacuna grave: chamado forte para mitigação (reduzir emissões), e quase nada sobre adaptação. E parece haver diferentes visões sobre o que o conceito de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” realmente quer dizer.
Pequeno passo
O texto indica um chamado para que os países ricos atinjam net-zero (neutralidade em carbono) antes do que estão prometendo, já em 2040. Isso foi pedido pelo Secretário Geral da ONU, António Guterres. Outro pedido é que as emissões globais atinjam seu pico já em 2025, mas sem detalhes de como as responsabilidades para isso seriam divididas entre as partes. Também há pedidos para imediata redução de termelétricas e queda do uso de “unabated” carvão em 2030. Triplicar renováveis e dobrar a eficiência energética até 2030 também está no texto. Esse conjunto seria um enorme salto para a humanidade no combate à crise do clima.
Realisticamente, apenas devem permanecer a linguagem ainda fraca de carvão e o aumento de eficiência e de uso de renováveis, inclusive porque o interesse econômico neste último item o assegura no texto.
$$$$
O GST atual reconhece a necessidade de envolver diferentes atores para ampliar o financiamento climático, inclusive enfatizando a qualidade do financiamento, mas a menção a meta de 100 bilhões, quase esquecida pelos países ricos, é vaga. Há um pedido para ampliação de doações e linhas de crédito que não aumentem o nível de endividamento dos países. Este último ponto é caro para a maior parte dos países sul global (não é o caso do Brasil) e se traduz em uma crise profunda e até mesmo humanitária, ao tirar o espaço fiscal dos países para prover bens públicos comuns, como saúde e educação.
O financiamento para adaptação deve ser dobrado, pede o texto, mas a linguagem continua fraca. É possível que as discussões da Meta Global de Adaptação tragam mais clareza sobre isso quando começarem a avançar na próxima semana
>>> Itamaraty sobre isso: indicou o tema como prioridade para o Brasil e definiu como “muito fragmentada” a forma como as questões financeiras estão colocadas no GST, sinalizando, inclusive, que este diagnóstico já foi feito pelo IPCC como um dos entraves à ação climática.
Clima no G20
O Brasil vai sediar a próxima cúpula do G20 em 2024, no Rio de Janeiro. O evento terá uma cúpula de líderes e uma série de reuniões ministeriais ao longo do ano. O embaixador André Corrêa do Lago, disse:
“Estamos procurando criar uma grande coerência para a participação do Brasil nesses eventos. Um dos esforços é assegurar que o G20 contribua para as negociações sem substituir as negociações, ou seja, conversar sobre pontos que não podem ser debatidos na estrutura de eventos como a COP, mas que estão relacionados.”
Concreto
Como o tema de Perdas e Danos já avançou, uma proposta mais concreta sobre ele está sobre a mesa: o estabelecimento de uma métrica comum, cooperação técnica e assistência financeira para a criação de inventários de perdas e danos nos países em desenvolvimento.
Setor de alimentos
A produção de comida em todas as suas dimensões é uma grande contribuinte das emissões de gases de efeito estufa, mas o setor não é sequer mencionado no texto. Observadores dizem que há uma lacuna interesse e até conhecimento sobre o tema, tanto entre os líderes políticos, como entre os negociadores.
Natureza
Menos de um ano atrás nós tivemos o acordo global para salvar a natureza na COP da Biodiversidade, em Montreal, mas ele não se reflete no texto do GST. Nem sinal também do Global Biodiversity Fund, acordado na mesma negociação. A conexão entre biodiversidade e clima não está bem estabelecida, mas há uma menção sobre reverter o desmatamento até 2030, mais forte do que o previsto – será mantida?
>>> Leonardo Sobral, também do Imaflora, está acompanhando essa agenda (também via Alessandra Leite)
“Nós queremos que os países que têm florestas tropicais discutam entre eles suas prioridades e integrem seus setores científicos e privados para integrar uma lógica de financiamento. é neste sentido que propusemos o Fundo Floresta Tropicais para Sempre”, disse Corrêa do Lago, citando destaque para o assunto na revista The Economist.
Quem disse o quê
Brasil: concorda com o G77 que ainda há muito a ser feito e está confiante em novos ajustes no texto, mas sinaliza que muitas ideias importantes para o país não estão refletidas no texto.
EUA: “atualmente atraído” pela posição do G77+China. O problema disso – ou talvez sua explicação – é que o G77 está bastante dividido sobre seu próprio consenso em relação ao GST.
Bolívia: acredita que o texto não reflete o espírito de Paris; discorda da linguagem em relação ao desmatamento, que gera mais emissões no sul global, na comparação com a linguagem para os temas de energias, que geram as maiores emissões do Norte global.
COP29
Quem vai sediar a próxima conferência e passará o bastão para o Brasil com a COP30, em Belém do Pará? Pelas regras atuais da UNFCCC, é o turno do Leste Europeu, e deve haver consenso para que um país seja adotado como sede. Por enquanto esse consenso não foi obtido, e se o impasse se mantiver, as regras determinam que o encontro seja realizado na Alemanha (que não quer hospedar a COP em 2024 alegando problemas fiscais) com presidência da COP anterior, ou seja, Sultan Al-Jaber, o retorno.
Cadeira, usa a cadeira
A COP30 só acontece daqui a dois anos, mas a disputa por sua presidência já começou. De olho na intenção do presidente Lula de anunciar rapidamente o principal nome da COP30, marcada para 2025 em Belém do Pará, papel ocupado na COP28 por Sultan Al-Jaber, pesos-pesados como o embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado, o governador Helder Barbalho e o ministro Rui Costa já falam na condição de presidentes da COP30 em grupos de conversa. Quem observa a disputa afirma que está no nível “quebra cadeira em briga de bar”. A decisão pode sair em breve.
Prezados leitores, esta foi uma semana e tanto. Temos mais 6 dias para que o GST estabeleça o nível de ambição para cumprir a meta de Paris de manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC.
>>> Eu terei um relatório fresquinho do DeSmog sobre os lobistas do Agro na COP28 chegando amanhã ou sábado (7-8/12). No próximo boletim, em 8 de dezembro, espero ter mais informações sobre isso para compartilhar.
Quintou!
Abraços,
Dubai, 6 de dezembro de 2023
Cínthia Leone, Instituto ClimaInfo